quinta-feira, 7 de julho de 2011

Crianças e Jovens com "Deficit Atencional”: desatentos ou desatendidos?

Prof. Jorge Gonçalves da Cruz*

Quais eram as perguntas com que o médico iniciava o diálogo com o enfermo desde os alvores da clínica médica (Hipócrates) até meados do século XIX? Diga-me que tens ...” “Explique-me como lhe dói ... Qual é a pergunta que nos últimos 150 anos foi substituindo àquelas?: Onde lhe
dói? (1) Que lógica há por traz desta sutil, mas significativa mudança? Que consequências
traz para o paciente e para o médico? A pergunta onde lhe dói?, não inicia senão que concluí o diálogo: a partir da resposta do doente, o médico assume toda a responsabilidade do diagnóstico e a
terapêutica, ficando como depositário do saber, do único saber que conta a partir dali: solicitará estudos por imagens, análises clínicas ... medicará e/ou formulará outras indicações terapêuticas (dieta, repouso, cirurgia ...). Seu objeto não é o doente, senão a doença, a pessoa do doente só intervêm em quanto portadora da doença ...
De fato o médico também não fala ou intervêm por si mesmo, senão em quanto representante ou funcionário do discurso médico, sua pessoa deve eclipsar-se ante aobjetividade científica da que ele é garante. Isso é cada vez mais claro a partir do fato que incluso o chamado olho clínico do médico é cada vez mais substituído pela aparelhagem de diagnóstico ... a relação central e determinante é entre instituição médica (dispositivo de saber-poder) e doença não entre médico e padecente.
Por quê se impôs esta orientação? Há muitas razões para isso:
a) Como diz Guardia -citado por Foucault- a saúde substituiu à salvação: ante o declinar da religiosidade a medicina ocupa o centro da cena como mediador na relação dos homens com a morte: a instituição médica por um lado faz presente o que é inevitável, nos mostra o rosto da morte, mas por outro lado a mediatiza, a conjura, a  ritualiza com novos cerimoniais, a tecnifica (2)...
b) A constituição de um saber, -neste caso o saber médico sobre a doença- leva a aquisição de certo lugar de poder. Deve ficar claro que quando se fala então do poder da instituição médica não se trata de um poder adquirido simplesmente por algum procedimento de coerção: é um poder que devêm de um certo saber e é também um poder atribuído, delegado, depositado pelos outros ... pelos doentes ...
c) Este poder médico não é monolítico, homogêneo nem a-histórico. Não é monolítico porque têm ocos, fissuras, pelo qual escapa sempre um resto: o que não encontra resposta no saber médico e se manifesta como mal-estar, seja do lado dos pacientes, seja do lado dos médicos. Mal-estar que se canalizará em medicinas alternativas, em práticas de curandeirismo, no recurso às diversas psicoterapias, nos debates críticos sobre as práticas médicas que se dão entre os próprios médicos, etc....
Não é também um poder homogêneo em razão daqueles debates entre médicos, mas também porque a instituição médica vai se ordenando, reordenando e diversificando permanentemente em forma de hierarquias por especialidades, por âmbitos de exercício profissional, etc. E finalmente não é homogêneo porque não se trata de um sistema fechado, senão aberto às influências do contexto social e o devir histórico: a prática médica fica submetida a tensões entre seus avanços técnicos e a constatação, por exemplo, de que uma inversão de tão só u$s 5.- anuais por criança reduziria em 50% os níveis de mortalidade infantil ao eliminar algumas de suas causas mais frequentes com o recurso da vacinação, a potabilização da água ... (3).
O que é certamente trágico se consideramos que este ano, como todos os anos, um milhão de crianças morrerão na América Latina por desnutrição e enfermidades curáveis (cólera, diarreia, etc.). Esta tragédia foi explicitada em 1996 pelo Dr. Jorge Costa e Silva, então diretor da divisão de Saúde Mental da Org. Mundial de Saúde ao expressarA grande ameaça da saúde é a pobreza, não se pode falar dela na miséria (citado por J.C. Stagnaro em El niño y el lazo social, Edic. Atuel).
Mas afirmar que as práticas médicas não são a-históricas impõe outras considerações: em cada época histórica a instituição médica modeliza as doenças em um complexo processo relacionado com a designação de recursos, a determinação de prioridades e as políticas de controle social que também, ali se expressam. Este processo têm determinações sociais e políticas que excedem à própria instituição médica, que acaba submetendo-se e servindo àquelas determinações. Assim, em alguma época haverãomédicos avalizando a queima na fogueira dos epilépticos -principalmente as epilépticaspor
estarem possuídas pelo demônio e a efeitos de purificar sua alma. Em outra época a instituição médica já consolidada e em sua versão moderna dará fundamentos à asilagem dos loucos, à camisa de força, o eletro choque, a lobotomia ou a camisa química. Durante o nazismo haviam médicos fundamentando cientificamente os procedimentos de purificação da raça superior; em todos nossos países formando parte das equipes de trabalhadores nas salas de tortura -desde as delegacias até os centros de detenção clandestina-. Se trata de aberrações isoladas ou subprodutos da lógica em
que fica encurralada a instituição médica? Esta mesma lógica é a que vêm determinando um deslocamento do poder médico até os laboratórios medicinais.
Deslocamento que podemos constatar de diversas maneiras:
a) Que lugar ocupam -medidos em ingressos anuais- os laboratórios de especialidades medicinais entre as grandes indústrias mundiais?
b) Que porcentagem do gasto anual em saúde se dedica a medicamentos e quanto a infra-estrutura hospitalária e salário dos profissionais?
c) Que procedimentos utilizam os laboratórios para influir, controlar, premiar ou castigar os médicos em função de que medicamentos e quantos receitam?
d) Quem modeliza hoje as doenças?
Deixo as preguntas a), b) e c) para que cada um investigue as cifras (mundiais, nacionais, etc.) mas me detenho nesta última pergunta: hoje as doenças -cada vez mais semodelizam, se definem, a partir das especialidades químicas e não ao contrário: se descobrem ou se criam sinteticamente novas drogas, se investigam seus efeitos possíveis, se determina assim sua utilidade potencial e a partir dele se definem doenças, síndromes, ou distúrbios para os que já possuem a droga adequada...
Isto se reflete nas sucessivas modificações da nosografia patológica e psicopatológica tal como se mostra nas diferentes versões do DSM (4), ou nas adotadas pela OMS, através das sucessivas edições do CIE (Catálogo Internacional de Enfermidades), cada vez mais compatibilizado com o primeiro.
O ADD (transtorno por deficit de atenção) e ADHD (transtorno por deficit de atenção com hiperatividade).
Se trata de um diagnóstico que tem alcançado grande difusão mediática e prática, primeiro nos EE.UU. e logo em nossos países, ainda que com tempos diferentes entre eles: há alguns anos o ADDé muito popular, por exemplo, no Chile e no Brasil, e mais recentemente vêm sendo na Argentina.
Aparece intimamente ligado à prescrição de certas medicações (em particular a Ritalina) como terapia central para crianças e jovens que manifestam labilidade de atenção, dificuldades para concentrar-se em sua atividade escolar, e/ou manifestam estados de inquietude e ansiedade (não ficam quietos, se distraem,pulam repentina e repetidamente de uma a outra atividade, não concluem o que iniciam ...). Psicólogos, psicopedagogos, professores e pais escutam falar e opinam cada vez mais sobre este distúrbio que parece adquirir caráter epidêmico.
Um potente aparelho propagandístico funciona ao redor deste mal, suasameaças e sua terapia. Aparelho que se parece bastante por exemplo, aos sistemas de venda de produtos Avon: folhetos de difusão e questionários que chegam aos docentes e pais, conversas e reuniões explicativas, grupos de pais de crianças com ADD com suas revistas, encontros e relatos testemunhais, profissionais que formamequipes para tratar o ADD e viajam ao exterior para receber cursos à respeito, artigos
em jornais e semanários.
Não vou deter-me no anedotário respectivo. Simplesmente convido aos profissionais interessados nisso a que façam seu próprio inventário e a que, quando possam, revisem algumas das muitas páginas que debatem na Internet a questão, desde todos os ângulos.
Sim quero revisar o capítulo correspondente do DSM IV (versão em castelhano, Ed. Masson, págs. 82 a 89):
Neste capítulo primeiro se propõe as características diagnósticas: se trata de um inventário descritivo referente a distraibilidade, impulsividade, manifestações de inquietude, etc. Se distinguem os casos de distraibilidade (deficit de atenção) com ou sem hiperatividade.
Logo fala de transtornos mentais associados: Se oferece um extenso e heterogêneo listado, sem nenhuma análise: o ADD ou ADHD se associa a baixa tolerância à frustração, arroubos emocionais, teimosia, insistência em que se satisfaçam seus pedidos, debilidade emocional, disforia, baixa auto-estima, rejeição por parte dos colegas. Às vezes transtornos negativistas ou de aprendizagem ou de ansiedade, ouda comunicação... Às vezes coexiste com uma história infantil de maltrato, ou abandono, ou adoção, exposição à neurotóxicos (ex. plomo) ou infecções (ex. encefalite) ou exposição in útero a fármacos ou retraso mental, ou escasso peso ao nascer ... De
novo uma longa lista e nenhuma hipótese explicativa...
Logo fala de Descobertas de laboratório. Aqui se esperaria encontrar com alguns argumentos surgidos na investigação experimental. Mas para inquietação dos leitores, só nos diz que não há provas de laboratório que hajam sido estabelecidas com valor diagnóstico na avaliação clínica do ADHD ... e que também não se estabeleceu qual déficit cognitivo faz com que em alguns casos quem sofre ADHD tenha rendimentos inferiores em alguns itens de testes mentais.
Superada nossa frustração podemos ir ao item seguinte titulado: Descobertas da exploração física e doenças médicas associadas: já não nos surpreende que nos digam que não existem características específicas associadas ao transtorno.
Passamos então a Sintomas dependentes da cultura, da idade e do sexo: O que nos diz? Que é certo que em alguns países se diagnostica mais população com ADD e em outros menos, em umas idades mais e em outras menos, mas o que não se sabe é se por uma diferença na distribuição do ADD ou por diferenças nos métodos diagnósticos.
Como evolui a doença? Só nos dizem que desde pequenos os observa inquietos e movediços ... mas não todos os inquietos e movediços se convertem em ADHD, e além do mais há quem sofre ADD sem hiperatividade, e então não são inquietos nem movediços .
E o Padrão familiar? Só nos dizem que se os pais ou outros vínculos próximos têm características de ADD, é mais provável que as crianças apresentem ADD.
E o diagnóstico diferencial? O conceito mais sucoso diz que o ADHD não se diagnostica se os sintomas se explicam melhor por algum outro transtorno mental ou seja que seria um diagnóstico por descarte.
Isso é tudo o que extraí do DSM IV.
Conclusões: O único certeiro é que se indica o tratamento medicamentoso (mais outros auxiliares) há crianças e jovens que se diagnostica como portadores de ADD e ADHD mas não se detectaram alterações orgânicas específicas, não há provas de diagnóstico clínico específicas, não há estudos epidemiológicos diferenciais (por país, sexo, idade, etc.) que sejam confiáveis, não há um padrão familiar identificado, não há uma história infantil específica, não há alterações intelectuais identificadas ... e o diagnóstico se descarta se outro diagnóstico se aplica melhor ao individuo em questão...
As crianças e jovens medicados com Ritalina, são curados ou são encamisados quimicamente? As dificuldades para concentrar-se, prestar atenção, ficar quietinhos indicam um déficit na atenção em quem? Nessas crianças e jovens? A quem deveríamos poder escutar, prestar atenção (pais, terapeutas, professores)?.
Será que essas crianças e jovens não nos falam, com seus gestos, de uma sociedade, umas instituições de saúde, umas escolas e umas famílias que mostram um severo transtorno por deficit atencional a suas crianças, seus idosos, seus jovens, seus adultos?
Não será necessário atender-los e atender-nos, em lugar de medicar-los e medicarnos?
Como decidir em que casos pode ser útil ou conveniente a medicação se não há comprovações neurológicas nem experimentais, nem clínicas, nem estatísticas, nem epidemiológicas?
Por agora o que há é certa medicação que se vende em dezenas de países a milhões de pessoas, e cujo consumo cresce geometricamente.
(Artigo publicado na Revista E.Psi.B.A. Nro. 9)


PARA APROFUNDAR:
Ao longo deste texto se indicaram com números e entre parêntesis algumas questões:
-À respeito de (1) pode ver-se: Michel Foucault ``El nacimiento de la clínica. Edic. Siglo XXI
-Para (2): Jean Clavreul ``El orden médico´´ Edic. Argot
-Para (3): Alicia Fernández, ``A mulher escondida na professora´´ Ed. Artmed
-Para (4):Revista EPsiBA Nº 0 art. de Juan C. Volnovich, ou o livro do mesmo autor ``El niño del siglo del niño´´. Edic.Lumen-Humanitas.

* E.Psi.B.A (Escuela Psicopedagógica de Buenos Aires)

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